O timing de “Sufragistas”, dirigido por Sarah Gavron, foi perfeito: lançado em outubro de 2015, as campanhas para o lançamento brasileiro em dezembro tomaram de assalto a internet mais ou menos na mesma época da “primavera das mulheres” – aquelas semanas em que a mulherada se uniu para falar de assédio e se articulou pra gritar “fora, Cunha” e se rebelar contra leis feitas por homens para controlar nossos corpos.
Quer dizer, no nosso caso, “protestar” é mais adequado do que “rebelar”. Não diria “rebeldia” – gritamos, fazemos textão, reclamamos e fazemos valer nossos direitos, mas não botamos bomba em lugar nenhum e continuamos nos comportando como eles acham que devemos (será que estamos esperando as leis mudarem?). Acho até que estamos pouco articuladas – olha quantas divergências no feminismo. Como bem lembra a personagem de Carey Mulligan em “Sufragistas”, somos metade da população mundial. Se a gente se unir, o que vocês vão fazer com a gente?
Não vão. Mulherada precisa se unir
“Sufragistas”, obviamente, é sobre o grupo de mulheres na Inglaterra que, no início do século XX, se rebelou e lutou para garantir o direito ao voto para as mulheres.
Já não tão obviamente assim, o longa trata de abusos que mulheres sofrem até hoje, em qualquer lugar do mundo. Abuso de força, abuso de poder, abuso sexual. Pessoas que julgam mulheres que lutam para garantir direitos às outras mulheres (inclusive mulheres que julgam essas mulheres), maridos que precisam controlar suas mulheres, homens que questionam nossa sanidade quando quebramos algum protocolo (por exemplo, deu uma opinião contundente? “Está de TPM”), leis criadas por homens para controlar mulheres, ambientes de trabalho que discriminam, que não permitem filhos, leis – inclusive! – que ajudam a manter a dinâmica ‘pai provedor / mãe cuidadora’ mesmo quando as mulheres também precisam trabalhar fora – ou seja: pai sai do trabalho e vai descansar, mãe sai do trabalho e faz a janta, põe mesa, cuida das crianças. Conquistamos o direito ao voto, mas ainda não fazemos as leis: embora algumas mulheres tenham orgulhosamente chegado à presidência de seus países, os congressistas são, em sua maioria, homens. Às mulheres, o papel de cuidadora. Dentro de casa. *E* provedora fora dela (ou dentro de casa, de home office, por até mais tempo do que se fosse provedora fora). Enquanto sinhôzinho “se estressou muito no trabalho hoje, vai tomar uma cerveja”, mas se madame resolve sair com as amigas, sinhozinho reclama que “você não me dá atenção”.
Desculpa, me empolguei. Deixa eu voltar pro filme
O filme se passa em 1912. A jovem Maud Watts (Carey Mulligan), mãe, esposa e funcionária de uma lavanderia, percebe o buxixo sufragista, vai ver qual é e percebe coerência naquilo. Maud conhece a farmacêutica e ativista Edith Ellyn (Helena Bonham-Carter, que surpreende num papel de pessoa comum – não é bruxa, não é fada, não é macaco, não tem nenhum transtorno cognitivo), começa a frequentar as reuniões e, conforme seu envolvimento com a causa do voto para mulheres aumenta, sua vida vai se tornando um pequeno inferno: depois de ser discriminada em casa, na rua e em todos os lugares por se envolver com política, resta a Maud se envolver com aquela causa até o talo. Afinal, como diz a líder do movimento, Emmeline Pankhurst (Meryl Streep), “não queremos quebrar leis. Queremos FAZER as leis”.
Claro, não vou contar os pontos dramáticos do filme (que você precisa ver). Também não vou contar o que você já sabe: que elas conseguiram, e que ainda falta MUITO para que mulheres tenham os mesmos direitos que os homens. E que nós estamos conseguindo, aos poucos, se não mudar as leis, mostrar que essa mudança urge.
Mas ainda acho que a gente podia dinamitar umas casas de congressistas pra chamar atenção.
* * *
Exatamente 100 anos depois, mais precisamente em 2012, uma jovem foi estuprada com requintes de crueldade dentro de um ônibus em Délhi, na Índia. Você lembra: seis caras estupraram uma mulher e bateram em seu acompanhante. Jyoti Singh, a vítima, morreu dias depois, devido aos golpes que levou durante o ataque. Espero que você não tenha esquecido dessa história. Impossível esquecer. Jyoti Singh e seu acompanhante, Awindra Pratap Pandey, estavam inocentemente indo ao cinema ver “A vida de PI”. E mesmo que não estivessem tão inocentes assim, isso não dá a ninguém o direito de abordar qualquer pessoa, violando seu corpo de nenhuma forma.
Quer dizer, na Índia isso é socialmente permitido. E o documentário “India’s daughter” (2015), de Leslee Udwin, investiga o caso até chegar na cultura de desvalorização da mulher no país. A diretora nem precisou ir muito longe: um dos estupradores entrevistados afirma logo de cara: a culpa foi dela, ela estava indo para aquele bairro e todos sabemos que quem vai pra lá não vai fazer nada que preste.
E aí você tem as figuras dos advogados de defesa, que poderiam usar um milhão de argumentos (esfarrapados, claro) como “este homens vêm de um ambiente ferrado, desconhecem noções de cidadania” – que não absolveriam os criminosos, mas justificariam, de alguma forma, a falta de cultura, e jogariam a responsabilidade da crença deles para o estado.
Mas não: o advogado endossa: “se filha minha realizasse atividades pré-nupciais e fosse desonrada, eu jogaria um barril de petróleo nela e tacaria fogo”. E outro advogado: “Temos a melhor cultura. Nesta cultura, não há espaço para mulheres”.
É. assim. mesmo.
O filme foi censurado na Índia, enquadrado numas cinco infrações – uma delas, a de “insulto com intenção de perturbar a paz”. O amigo que acompanhava Jyoti disse que “não foi bem assim como contado no filme, só a gente sabe exatamente o que rolou”. O caso, na época, gerou uma onda de protestos de jovens, homens e mulheres, sem liderança política – apenas a revolta contra um crime brutal e um sistema que não apenas aceita que a mulher seja estuprada e desrespeitada em seus direitos, como também pune quem não concorda.
Por sorte (??), estamos no Brasil e o filme está no Netflix. Se você ainda não assina, aproveite que dá pra assistir ‘Narcos’, ‘Orange is the new black’ e ‘House of cards’.
Enquanto isso, no Brasil…
Um Partido da Mulher Brasileira com uma maioria de homens, sem o menor interesse de levantar as pautas dos direitos das mulheres (apenas de “aumentar a representatividade da mulher na câmara”), que se diz “centro esquerda”.
Realmente, quebrar leis e convenções sociais – e mostrar que quebramos, e fazer com que a sociedade entenda que essas leis não fazem sentido, que devemos ter direito sobre nossos corpos, que precisamos amamentar nossos filhos *e* que somos também responsáveis pelo sustento do lar, que precisamos do apoio dos nossos companheiros – que deveriam ser companheiros, e não apenas provedores (alô licença maternidade e licença paternidade?), que homens e mulheres são iguais (cobrir o peito é o caralho) – é necessário.
Mas FAZER as leis pode ser ainda mais efetivo.
Alguém se habilita a entrar no jogo sujo da política?
O que você pretende fazer?
E se mais pessoas como você entrassem na política, este não seria um jogo limpo, finalmente?
Vamos falar sobre isso.
Opa! ..alguém ai falou em dinamitar casas e congressistas? TO DENTRO!
Peço licença de adaptar parte do discurso de Emmeline Pankhurst, personagem da Maryl Streep no filme Sufragistas, em algumas palavras mais sintéticas: “Depois de 50 anos gritando por direitos, o que nos resta agora é partir para a AÇÃO!” 😀
Pois é. Mas que ação? Porque, sério, textão no facebook não muda muita coisa. Chama atenção, verdade, mas a impressão que dá é que quem está lá em cima fazendo as leis está alheio a isso…