Ela não gostava de carnaval, ela
É, eu sei. Desde aquele dia em 1981 que me assustei com um lesk vestido de bate-bola que eu não quero saber de carnaval.
Meu pai tentou. Me levava para o carnaval de rua do bairro. Quente, gente pacaralho, música alta, zero graça.
Eu também tentei. Não gosto de muvuca, não me sinto confortável em ambientes que não dá pra conversar, sentar, nunca fui de beijar na boca de desconhecido, ia fazer o quê em bloco? Até tentei em 2009, estava quase gostando desses blocos menores, menos bombados, mas aí emendei um casamento no outro, e depois um bebê, uma pandemia, e meu sonho de ser uma pessoa normal que curte carnaval foi pro caralho.
Mas Sapucaí era uma daquelas experiências que a pessoa TEM QUE viver uma vez na vida – especialmente se você, como eu, é “esse povo de indústria cultural e entretenimento”. E era agora ou sabe-se lá se a lombar ou a criança não vão me deixar ir de novo.
Eu tinha o maior preconceito com Sapucaí – “ensaiado, para gringo ver, zero espontaneidade”. Como tinha o maior preconceito com dança de salão e encontrei minha vida nela, como tinha o maior preconceito com evangélico e na real continuo tendo.
Cheguei no escuro, sem saber nenhum enredo, nenhum samba, só sabia que naquele dia veria Império Serrano, Acadêmicos do Grande Rio, Mocidade Independente de Padre Miguel, Unidos da Tijuca, Acadêmicos do Salgueiro e Estação Primeira de Mangueira.
E o que vi foi uma ESPETACULAR celebração da cultura brasileira e africana. O que vi foi uma GRANDE festa de santo para milhões de pessoas, com apoio do poder público.
Em tempos de intolerância e marketing multinivel religioso, um evento desses no mainstream é, sim, resistência.
Tá com tempo? Se não tiver, salva pra ler depois. Senta que lá vem resenha.
Nunca prestei muita atenção no Império Serrano, mas:
1, foi meu PRIMEIRO contato com aquela OSTENTAÇÃO do grupo especial, então me impressionou
2, no grupo de amigos estava a Michele, que é Imperiana de carteirinha e coração. E foi impossível não me deixar contagiar pela empolgação daquela mulher
3, homenagear Arlindo Cruz foi bonito
Firma na palma da mão, tem alujá e agogô
Imperio Serrano, falange de Jorge, no oxê de Xangô
Laroyê, èpa babá, há de roncar meu tambor
O verso de Arlindo, poema infindo, morada do amor
o trabalho dos carnavalescos pra construir os enredos e meter religiões afrobrasileiras em QUALQUER tema também é muito bom. Esses caras sabem bem o que fazem. Me pareceu que tem um componente forte de “ou é isso ou deixar nossa comunidade ser convertida pela igreja”.
Até aí eu tava meio cheia do distanciamento crítico. Então entrou a Grande Rio. A comissão de frente vem com uma alegoriazinha com um barzinho e um são jorginho, pensei “ow, fofo, mas nunca serão Império Serrano”
Eis que aparece o Abre Alas da Grande Rio com um CARROSSEL de São Jorge SURRA DE OGUM NA AVENIDA é pra isso que eu nasci no Brasil
Então veio o carro de Cosme, Damião e Doum e aí caiu a ficha
CARALHO, ESSA PORRA É OFERENDA, EU TO NA MAIOR FESTA DE SANTO DO BRASIL tá todo mundo cantando ponto e os caralho
Chorei emocionada mermo, fodace.
Passou a Grande Rio e eu já estava totalmente SAPUCAIZADA, começou a bater um cansaço mas impossível dormir naquelas condições. Desfile monocromático conceitual da Mocidade não me animou muito (mas o forrozin no meio do samba ficou gostoso), pensei “É na Unidos da Tijuca que eu durmo” e aí eles me abrem com uma
GUITARRA BAIANA
Sim, meus foliões: fui pro desfile no Rio, levei axé na cara, EXTREME CARNAVAL EXPERIENCE e o povo todo cantando
Iluayê toca o sino da igrejinha
Ilêayê atabaques e agogôs
Pra louvar meu Santo Antônio
Pra saudar meu pai Xangô (kaô meu pai kaô)
E eu pensando na tal projeção do Brasil evangélico em 2032 e vendo aquilo e pensando naquele monte de branquela zona sul de tiara fazendo bloco clandestino na pandemia ano passado e falando “uhul, é resistência”, e não, gente: resistência é isso.
(e eu estava no setor popular, que me parece ser o MELHOR lugar pra assistir ao desfile)
Então
Tudo
Ficou
Vermelho
e se tem uma coisa que o Salgueiro conseguiu foi levantar a mamacita aqui àquela hora da madrugada.
Isso aqui é fan service: teve hino, grito de torcida, MELHOR LARGADA, sério. Assiste isso:
Vou chamar o meu Salgueirooooooo
A bateria mais famosaaaaaa
Sou malandro batuqueirooooooo
ARREPIA, FURIOSA
(tá, eu sei que vermelho é a cor da escola, mas “delírios de um paraíso vermelho”, falar de “Bendita redenção / Os excluídos libertando suas dores / Embarque pro renascer dos seus valores / Basta de violência e opressão / Chega de intolerância” me pareceu correto.
E teve o carro do Bolsonaro, quer dizer, do Belzebu. Pra mim, a mensagem foi bem clara.
Por fim, a Mangueira.
O desfile foi maravilhoso? Foi. Mas eu acho que você tem que ver esse vídeo da Margareth Menezes (que desfilou na escola) cantando o samba da Mangueira.
Roda o VT:
Essa mulher é a nossa ministra da Cultura. Só queria lembrar isso. Que nós temos uma ministra da Cultura que entende o significado de cultura.
Bom, no final já tava todo mundo cantando, dançando, tomando a benção das senhorinhas que saíam do desfile direto pra arquibancada, o sol nascendo, o dia raiando, a Mangueira entrando, o sono não vinha, e dois dias depois quarentaecinquei em plena terça de carnaval.
Se ano que vem tem mais?
Claro que tem mais.
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Beijo e boa semana!