O último grande feito da minha vida foi aos três anos, quando aprendi a ler sozinha, sem pressão, sem ninguém ensinando – simplesmente juntei as letrinhas e fui.
Depois disso fiz umas coisas bem medíocres, confesso.
Eu era uma criança normal, apesar de ter aprendido a ler super cedo. Segui sem pular série, porque era óbvio que eu precisava desenvolver outras habilidades cognitivas, emocionais e motoras, e conviver com crianças da minha idade.
Fiz aulas de dança, mas nunca fui exímia dançarina. Tive banda, mas nunca tive uma puta voz – sou afinadinha, vá lá, mas muito longe de cantar pra caralho. Cozinho o trivial, mas não tenho nenhum prato memorável, que seja a minha especialidade. Toco ukulele há mais de dez anos e mal lembro da sequência de acordes de “Farofa-fá” (que são dois acordes só). Sei desenhar, mas não sou ilustradora.
(talvez eu seja ilustradora sim, mas preciso trabalhar isso na terapia)
Nunca passei em concurso, apesar de ter feito alguns. Tentei algumas vezes ingressar em mestrado acadêmico e ficava de fora por duas, três vagas. Faço bem meu trabalho, pago todas as contas da casa, mas não tenho a menor perspectiva de, sei lá, comprar um imóvel.
Filho. Filho eu sei fazer bem. Minha filha é a criança mais maravilhosa da galáxia.
Mas todo o resto é meio mais ou menos.
Quer dizer: eu escrevia bem.
Digo “escrevia”, me referindo ao passado, porque ando sem paciência. Sem tempo. Com sono, com mais responsabilidades, com mais o que fazer, e acho que desde o advento das redes sociais comecei a pulverizar minha produção em tweets, legendas para fotos no Instagram, textão revoltado com política no Facebook, e nessa de produzir conteúdo para Mark Zuckerberg e Elon Musk ficarem mais ricos, perdi o foco. Escrevi muito para ser social e pouco para mim. Uma lástima, porque eu escrevia mesmo muito bem.
Vou reciclar um nude texto de 2003 aqui para você entender do que estou falando:
30 de agosto de 2003 em Uncategorized
Eis que hoje foi um daqueles dias – numas de tornar o ambiente um pouco mais propício ao conforto de uma visita recém-operada das vias nasais, resolvi eliminar uma caixa de papelão cheia de papéis inúteis.
Isso foi antes da reforma ortográfica, perceba.
Porque, sabe, algumas coisas continuavam encaixotadas desde que me mudei para cá. Por mais que esse apartamento seja da família e eu não tenha a obrigação de sair daqui tão cedo, gosto da idéia de ter tudo encaixotado – ou facilmente encaixotável – para poder me mudar quando quiser. Porque pra uma pessoa desorganizada como eu, vocês não imaginam o inferno que foi guardar centenas de miniaturas de Kinder Ovo, outras centenas de cds, gavetas e mais gavetas de material de desenho e pintura, revistinhas em quadrinhos e tudo o mais. E isso porque estou mais perto dos 30 do que dos 20.
Só saí daquele apartamento em 2013. E algumas coisas estavam encaixotadas ainda. Não falo isso com orgulho.
Enfim, continuemos.
Aquela caixa de Guaravita com papéis saindo pelos cantos estava me incomodando e pesando no ambiente – isso aí, pesando, num quarto já pesado por conta desses armários pesados de madeira escura. Mas vamos lá, vamos descobrir o que tem dentro, guardar o que interessa e jogar coisas fora – deeeeeussss, como eu tenho dificuldade em jogar coisas fora!!
No meio daquelas revistas de informática com produtinhos obsoletos e cds da America Online, achei uns lances de faculdade. Histórico escolar do primeiro período (!!!), grade das matérias de antes da reforma curricular do curso de Produção Cultural (reforma que quase me impediu de me formar), e uns textos da aula de Oficina Literária.
É, eu era elogiadíssima na aula de Oficina Literária.
Não que eu escrevesse bem. Mas é que eu escrevia diferente.
De fato, eu escrevia diferente na época em que escrevi que eu escrevia diferente. Era mais descritiva, acho. Anos de terapia, maternidade, idade e menos tempo livre, combinados com o hábito profissional de escrever textos objetivos e com limite de caracteres, me transformaram numa pessoa mais factual.
O que se seguiu foi um longo texto sobre meu descontentamento com poesias do tipo que parece que a pessoa simplesmente largou umas palavras ali, saiu correndo, tacou o foda-se. Eu achava, sei lá, preguiçoso.
Pois a tarefa daquela aula de oficina literaria era justamente… poesia.
O fato é que naquele dia eu – que já não sou poeta – não estava com o mínimo espírito de escrever coisas bonitas para emocionar a turma. Então, para caracterizar o poema, optei pela estrutura formal de versos e rimas. O resultado segue abaixo:
Soneto? Que Soneto?
Vou lhe contar uma história sobre um amigo
Amigo que deveria ter sido ator
E sobre quem respondo com imenso ardor
Quando me fazem comentário tão antigo
O mundo jamais pressentirá tal perigo
Contido em tal resposta, causa-lhes torpor
A minha tamanha ousadia em lhes expor
E indagam o que está havendo comigo
Por ainda me servir da velha anedota
Este soneto explicará ao retardatário
Do que se trata essa piada idiota
É apenas um jogo de rimas sumário
Do qual, se fores esperto, tomarás nota
E nunca me perguntarás “Mário? Que Mário?”
E nunca mais vou dizer que o que eu faço é mais ou menos. Tive fanzine, tenho blog desde 2001, colaborei com revistas, sites, informativos. Sou paga para escrever – porém, hoje desenvolvo textos para escritórios de advocacia do mundo todo.
O que eu faço não é mais ou menos.
E nem o que você faz. Libera sua arte. Bota na roda aí. Quero conhecer.
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