Naquela sexta-feira chuvosa, saí um pouco mais tarde do trabalho e resolvi pegar um táxi para casa. Motorista de táxi e cabeleireiro, bora dar papo pro sujeito. E, claro, o assunto era o tempo e as enchentes das última semana. No que o rapaz, jovem e, só depois que percebi, louco, me vem com essa:
– É a profecia maia, né? Já está acontecendo.
– Ô.
– Está tudo na palavra de deus. Os maias disseram, mas deus escreveu no livro do apocalipse. E sabe o que vai acontecer? Só quem aceita Jesus vai para o reino dos céus.
– Hein?
[A partir daqui, leitor, o motorista se empolgou e, intercalando cada pensamento desconexo com um ‘você tá me entendendo?’, mostrou que, como bom crente, acredita num livro do qual não entendeu chongas]
– Deus escreveu e está escrito, cê tá me entendendo? Vai tudo acabar, Deus criou a terra e o homem, e deu ao homem o livre arbítrio, cê tá me entendendo? É a ação do homem que está fazendo isso tudo, essa desgraça toda…
[aí você pensa que ele vai falar dos fdp que jogam papel na rua, que não reciclam lixo, que desequilibram o meio ambiente, que emitem gases poluentes, mas não]
-…porque é gente que não aceita Jesus no coração, cê tá me entendendo? É gente que não vive dentro da lei de deus, é gente que vive em pecado, é homem-sexual (sic). Jesus veio, o cordeiro, para salvar a humanidade, foi apedrejado e crucificado, morreu, ressuscitou ao terceiro dia, tudo para levar a palavra de Deus às pessoas. Vai acabar tudo, já está previsto no Apocalipse. Mas só quem vive de acordo com a palavra de Deus vai para o reino dos céus.
E eu me pergunto, leitor, que palavra é essa que proíbe amor e tolerância, condenando quem ‘vive em pecado’, que fim do mundo é esse que nego só quer saber do seu pedacinho de céu e os outros que se danem, dane-se a Terra que te deu comida e moradia e que é um pedacinho mínimo de algo muito maior, do qual devemos cuidar como se fosse nossa casa. Eu acho simplesmente que o sujeito não entendeu o livro, e que ao invés de pregar ipsis literis a palavra escrita em um livro, provavelmente por monges não lá muito santos na idade média, se ao invés disso ele ouvisse o que Deus, considerando que Deus ‘está em todas as coisas, faz parte de todas as coisas’, se ele ouvisse o que o ecossistema quer dizer como se aquilo fosse a palavra do que ele chama de Deus, talvez a humanidade estivesse muito melhor.
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Não tenho absolutamente nada contra manifestações de fé como a que vai ocorrer 4a que vem, o tal Dia D. Que aconteça, que haja paz, que se saiba o que se quer, o que se vai pedir. Que seus manifestantes não sejam inflexíveis a ponto de condenar outras visões de mundo, outros estilos de vida. Que não hostilizem umbandistas, gays, metaleiros ou o que quer que você queira ser da vida. Que aprendam a ler e a interpretar texto, PELO AMOR DE DEUS.
“Deus”, essa terceirização de responsabilidade da sua criação, dos seus atos, do que você faz no mundo, para uma entidade supostamente maior que julga, pune e abençoa – de acordo com o que você acredita, uma vez que Deus é imaterial, ninguém vê que ele está lá, depende da crença de cada um. Quer dizer, você cria seu Deus à sua imagem e semelhança, e não o contrário. E essa punição ou bênção está no seu coração, ou melhor, no seu arrependimento (ou não) do que você acha que merece punição (ou aprovação).
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A culpa da chuva não é nossa, encostas deslizariam do mesmo jeito (com ou sem casas construídas, pessoal da Habitação!), mas a responsabilidade de manter a cidade em ordem para que ela possa receber as chuvas como se fosse um fenômeno natural comum, está é nossa sim. E você? Quando foi a última vez que jogou papel no chão?