A Paixão de Cristo Segundo Mel Gibson

(diálogo imaginário)

– Ah, é um relato fiel do que aconteceu com Jesus Cristo!

Só lamento que você chame os evangelhos, relatos pessoais de pessoas que não estiveram lá o tempo inteiro e literalmente traduzidos de línguas mortas de ‘relato fiel’.

– Tá, mas então é uma representação fiel das escrituras da Bíblia.

Ã-hã, aquela figura andrógina que observa tudo de longe foi relatada em todos os evangelhos, você não leu?

– Errr, não. Mas sei a história, lógico, quem não sabe? E sei que teve toda uma pesquisa histórica para reproduzir fielmente os métodos de tortura da época, assim como Mel Gibson teve a manha de fazer todo mundo falar em aramaico, para dar mais verossimilhança ao filme.

Verossimilhança com a Monica Belucci de Madalena Arrependida? Verossimilhança e rostos conhecidos são duas coisas raramente compatíveis. Aliás, esse filme é ótimo para a gente saber de onde vieram muitas das expressões que utilizamos comumente – muita gente ‘lava as mãos’ para se omitir de assuntos sem saber que o gesto foi popularizado quando Jesus ‘padeceu sob Pôncio Pilatos’, retratado em ‘A Paixão de Cristo’ como um cara bem político, cujo grande erro na história de Mel Gibson é apenas ser omisso. E todas as pessoas que tiveram um ‘choque de realidade’ quando viram o filme e ficaram impressionadíssimas e finalmente tiveram a noção do que Jesus Cristo realmente sofreu (isso sem questionar se ele existiu ou não, e se existiu, se as coisas aconteceram dessa ou daquela maneira) vão continuar dizendo ‘padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia’ na missa do fim de semana, como se ‘seo’ Gibson tivesse dito toda a verdade sobre o sofrimento de Jesus, mas não sobre Pôncio Pilatos, que continuará com seu lugar na decoreba, certo?

– É porque o marketing do filme é Jesus Cristo.

O marketing da Igreja Católica é Jesus Cristo, né? Apesar de catolicismo e cristianismo serem duas coisas bem diferentes.. Pôncio Pilatos é um mero coadjuvante.

– Pô, o Pôncio Pilatos de ‘A Vida de Brian’ estava mais bem construído.



De fato, quando a multidão aclama ‘soltem Barrabás’, cheguei a pensar alto ‘Welease Bwian‘, a referência é bem forte, mas ‘A Paixão de Cristo’ é um fime tão tenso que não dá margem a piadinhas. Além do mais, minha criação de garota católica me remeteu mais aos versos decorados do Creio-em-deus-pai e em como os Passos da Paixão de Cristo (também conhecidos como Via Sacra) finalmente deixaram de ser quadros e tomaram uma forma mais realista do que aquela coisa limpinha das estátuas com uma chaga ou outra escorrendo..

– Então você admite que o filme é realista?

Eu disse ‘mais realista do que’. E acho também que todo mundo que realmente acredita em Jesus como mártir deveria assistir a esse filme pra ver o que é martírio de verdade.

– Você disse ‘de verdade’.

Ah, não fode.

– Mas então, você disse que é um filme tenso. Você ficou tensa.

Fiquei, claro. É o cara levando chibatada e sendo humilhado o filme inteiro, e não poupa sangue, suor e lágrimas. Se eu fiquei tensa vendo ‘O Silêncio dos Inocentes’, é de se esperar que num filme desses..

– Tem uns sustos, né?

Ô. Parece que as marteladas e chicotadas do filme tiveram seus volumes aumentados para impressionar mais o espectador. E tem aquelas alegorias criadas pelo Mel Gibson para impressionar mais ainda.. vou sonhar com aquelas criancinhas da alucinação do Judas.

– Você ficou impressionada?

Ô, se fiquei!

– Então você gostou do filme?

Embora uma coisa não tenha nada a ver com a outra, gostei sim, bastante. Embora haja alguns exageros de alegorias, é um filme necessário, à medida em que mostra coisas que os fiéis seguidores das escrituras sagradas tinham medo de ver. Tá, passado o furor da estréia, todo mundo vai esquecer o que viu e continuar idolatrando suas imagenzinhas sofredoras lá, mas pelo menos Mel Gibson tentou.

– Mas se é inverossímil e alegórico demais, como você gostou?

Se eu quisesse ver um documentário, alugava um filme da National Geographic sobre as descobertas arqueológicas que provam que Cristo viveu sei-lá-aonde…

– Se isso não é um relato da realidade, então você admite que essa versão do Mel Gibson é romanceada pra cacete e o cara é um poser e presepeiro que coloca o filme todo em aramaico pra tirar uma onda de católico fervoroso?

Ou pra isso ou pra efeitos de marketing. Ou os dois. Sobre a versão romanceada, não sei. Eu não estava lá para saber como foi, se Jesus passou mesmo por tudo aquilo.

– Então você admite que Jesus existiu mesmo?

Ai meu Jesus Cristo, vai começar..

– Tá vendo? Falou de Jesus, acredita nele..

Ai meu Deus do céu..

– Tá vendo?

* * *

Tá bom. Pra descontrair: se antes a comparação entre Shmi Skywalker e a Virgem Maria era inevitável, tendo Maria como a original, esta, em ‘A Paixão de Cristo’, parece bastante inspirada na mãe de Anakin.

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