Má literatura
Meus dedos estão gelados de lavar a louça do dia e mal conseguem digitar. Isto aqui é má literatura, aqui não há virada de páginas, apenas o maldito e desconfortável scroll down. Computador tem cheiro mas é efêmero, depois de um tempo o encanto da novidade acaba – livro não, livro quando não tem cheiro de novo tem cheiro de antigo e guardado, o que é muito melhor – não conheço alma que não se emocione com cheiros de infância, cheiros diferentes, cheiros de comida, cheiros de casas, cheiros de perfumes que lembram pessoas, cheiros de pessoas. Aliás, cheiros de pessoas são irreprodutíveis, o que me mata aos poucos quando imagino que a qualquer momento posso perder o cheiro desse cara – porque o cheiro da goiabada que minha avó fazia no forno a lenha pode encontrar um equivalente, posso chegar naquele estacionamento triste e sem meus primos correndo e minhas tias ensinando pra gente o que era bertalha e como criava codorna e enchendo a piscina de plástico com água da mangueira, e descobrir que preservaram o forno de pedra, o que vai mudar são as dimensões do lugar, antes um quintalzão gigante onde dava até pra brincar de esconder. Mas o cheiro daquelas pessoas específicas que se perderam no mundo, meu amigo, você não vai conseguir de novo.
João César Monteiro, português falecido neste ano de 2003, escreveu, dirigiu e atuou em “A Comédia de Deus” (1995), onde seu alter-ego João de Deus trabalha no Paraíso dos Gelados, uma sorveteria, e almeja atingir o paraíso pela perfeição de seus sorvetes. Qual foi o último filme português a que você, brasileiro, assistiu? Nós é que mudamos a língua e o sotaque deles é que é complicado de entender? Isso me cheira a preguiça, a mesma preguiça de entender que nos acomete em relação à literatura – desacostumamos a parágrafos longos, só sabemos ler textos pontuados de palavra em palavra e James Joyce é o chato? Sei.
Descobre-se então o segredo do formidável sorvete de João de Deus (você não vai ver o filme mesmo, ó pá!): ele capta a essência humana banhando belas moças no leite que será utilizado para a manufatura do sorvete. Parece escatológico mas é bonito pacas. Porque, neste exato momento, o que eu mais queria era uma essência de gente, um cheiro específico que me acalma e excita ao mesmo tempo, que me dá segurança e dá medo, que me faz ver meu vazio ao mesmo tempo que me preenche.
E se esse cheiro estivesse aqui, eu enterrava meu nariz nele.
Estou com uma pilha enorme de coisas para ler – desde livros de teoria da comunicação até cosmologia, passando por algumas obras de ficção. No entanto, poesia – pra mim – é ouvir Siouxsie & The Banshees.
(só pra constar: achei “Ulisses”, de James Joyce, chato pacas – não passei da quarta página. Foi na época em que descobri que “On The Road”, de Jack Kerouack, era fácil e gostoso de ler e parecia ter uma boa tirlha sonora, o que me interessou muito mais – hoje a versão da “Odisséia” me parece mais interessante, pretendo tentar de novo em breve)
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Boa literatura
Chega dos meus devaneios cotidianos! Estou me aproveitando da fama de ‘diarinho’ e da máxima ‘o blog é meu, vou fazer dele o que quiser’ pra escrever essas inutilidades. Vão ler algo que preste, vão; “Metamorfose”, de Franz Kafka, está inteirinho aí pra ler, em inglês – e em modo texto, nada de pdfs que demoram anos para abrir. Aí vocês podem conferir que ele não se transforma numa barata, mas num inseto genérico – e gigante, não necessariamente monstruoso, como dizem as traduções.
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Eu? Uma daquelas moscas verdes-metalizadas que parecem paradas no ar enquanto voam, não sei o nome daquilo
E você? Se certa manhã você acordasse de sonhos intranqüilos e se encontrasse transformado num inseto gigante, que inseto você seria?