Uma breve análise do modelo de negócios já meio defasado do Fora do Eixo


Confesso que estou curtindo demais esse momento de discussões sobre o modelo ‘anticapitalista’ promovido por coletivos produtores/difusores de cultura – notavelmente, essas discussões sobre o Fora do Eixo. Nunca vi um show promovido por eles – ok, tudo bem, eu não conto, sou do eixo, né? – mas acompanho avidamente, desde a época de faculdade (e isso faz muito tempo) as mudanças nos modelos de negócios promovidas pelas tecnologias de produção e difusão de produtos culturais – minha monografia de conclusão da graduação em Produção Cultural, há mais de dez anos, falava de música. Mas fui trabalhar com cinema, com internet, com inovação, e agora não tem mais volta: é paixão.

Participei do grande fórum CulturaDigitalBr em 2009, fiz curso de extensão em Capitalismo Cognitivo na UFRJ coordenado pela Ivana Bentes, frequento palestras, cursos e eventos ligados ao assunto; tenho um pezinho no jornalismo e outro na música, frilei muito com músicos, tanto na produção de shows como na produção de conteúdo para redes; casei com músico e assumi meu lado artista, ora bolas. Então não é de hoje que esse assunto me interessa. Não consigo ver essa discussão toda em cima do Fora do Eixo e não vibrar com cada texto kilométrico atacando ou defendendo os caras.

Entendo e prego a necessidade de mudança de modelos de negócios, a cultura dos coletivos, conhecimento, informação e reputação como geradores de valor, em muitos casos maior do que dinheiro. Entendo que não faz sentido chamar os caras de seita, porque tá na casa trabalhando 24h/7 quem quer, e quem não gostou que saia dali e procure um emprego de verdade, ué. Há coisas muito legais nessa história toda. Por outro lado, esses caras precisam de um novo modelo de negócios urgente. Se um dia eles acabarem, tudo bem: muita gente boa vai continuar produzindo arte e cultura fora do eixo Rio-SP, sem o apoio deles. Mas, por todo o discurso moderno baseado em redes e tecnologia, e até pela importância histórica dos caras na cena de cultura digital no Brasil, seria legal da minha parte tentar ajudar a manter a organização pulsando. Vamos lá:

1 – A decisão sobre remuneração cabe ao autor

Em primeiro lugar, porque esse negócio de pagar com troca de serviços de parceiros pode funcionar bem pra uns, mas não para outros – e aqueles que preferem receber seus cachês em espécie não precisam ceder seus produtos para o Fora do Eixo, simples assim – mas o Fora do Eixo não pode, simplesmente não pode ameaçar músicos, como há relatos de que tenha feito; não pode se apropriar de produções alheias para divulgar sua marca – lembrando que estamos falando de um universo não regido por dinheiro, mas regido por reputação. É só lembrar das licenças creative commons: pode compartilhar, mas não pode ganhar em cima, se eu não quiser. E se você não ganha dinheiro, mas ganha reputação, poder, contatos, capital social, mailing ou seguidores às minhas custas, sem me remunerar da maneira que eu decidi quando escolhi atribuir uma licença ao meu produto – que pode ser em dinheiro, em atribuição, em potes de Nutella, em cursos de dança grátis – , você é um pilantra. E pilantragem pode trazer problemas jurídicos.

2 – Modelo de trabalho antiquado

Em segundo lugar, sem questionar se o esquema de trabalho nas Casas Fora do Eixo pode dar merda com o Ministério do Trabalho e considerando que todo mundo que está lá está porque quer, ninguém obriga a seguir essa lógica de trabalho 24/7, de ultrapassagem de limites entre pessoal e profissional, eu diria que essa onda de ‘a tecnologia já mesclou a vida pessoal com a vida profissional, somos todos conectados 24h por dia e nosso trabalho É quem a gente é’  já está defasada. Amigo, leia Tim Ferris. Você pode ser EXTREMAMENTE produtivo, focado e operar com metas factíveis por pouco tempo do seu dia, pode delegar tarefas, você pode trabalhar à distância, você pode fazer o que quiser. Esse esquema de ter que estar no seu local de trabalho em horários predefinidos é extremamente fordista – e, consequentemente, capitalista pra caramba. Então não venha tirar onda de ‘caixa coletivo’, comunistazinho de boutique, porque não há nada mais capitalista do que pessoas que vivem para o trabalho. Não tem dinheiro envolvido, mas alguém está lucrando algo com essa história toda – e não é você, o babaca explorado que escolhe viver para trabalhar pra alguém. Tudo bem, é para um bem maior, para uma coletividade… mas vocês hão de convir que muita gente tem se sentindo lesada pelos esquemas deles. Então não é exatamente um BEM maior, certo? De qualquer forma: cadê a liberdade? Como assim, horizontalidade e comunidade, e você tem que pedir permissão pra ir pra casa?

Leiam ‘A semana de quatro horas’ e aprendam o que é modelo de negócios, trabalho e remuneração baseado em redes e em tecnologia. Isso aí que eles fazem não tem NADA de revolucionário. Me lembra aquelas agências de publicidade onde todo mundo veste a camisa da empresa, mas não tem fim de semana pra ficar com a família. “Ah, eles são minha família”. Sei. A-ham, senta lá, Claudia.

3 – Modelo de negócios cada vez mais longe de ser autossustentável

E terceiro, como Cid bem lembrou, o Fora do Eixo virou um intermediário de patrocínios. E desde aquela época em que eu era apenas uma formanda em Produção Cultural, já tinha uma certa bronca com a cultura do edital.

Depois que fui trabalhar com isso, só piorou.

A indústria cultural hoje, no Brasil, é excessivamente dependente de fomento alheio, mais especificamente dinheiro público. Isso tem diminuído graças a entidades e órgãos que têm preferido incentivar o desenvolvimento de projetos a simplesmente fomentar uma produção que, a partir do momento que já sai do papel, já está paga por alguém; a entidades, órgãos e empresas que têm investido em produtos culturais, e não simplesmente apoiado – o próprio termo investimento já pressupõe alguma espécie de retorno, o que dá ao produtor da obra o compromisso com levá-la para um grande público. A gente, que PRODUZ cultura, precisa aceitar que verbas públicas são limitadas, e é impossível incentivar tantos projetos quanto existem produtores, a não ser que o dinheiro concedido seja ínfimo e não pague nem a água do catering do primeiro dia de produção. O órgão público gastava dinheiro à toa, porque essa verba, de tão pouca, fazia pouca diferença no orçamento, e o produtor reclamava da pouca verba. Mas tava sempre lá pra pedir, né? Verba é verba.

Nos últimos tempos, as gestões de cultura que tenho observado à minha volta, em esferas municipais, estaduais e federais, têm trabalhado pra mudar esse cenário – por isso, o desenvolvimento de projetos (ensinar a pescar é muito mais lucrativo para todas as partes do que dar o peixe), os prêmios de estímulo à qualidade, que dão retorno a projetos com compromisso com público, e o foco nas áreas reembolsáveis – que vão garantir o retorno financeiro pra sustentar toda a operação da empresa, possibilitando, consequentemente, também o investimento a fundo perdido. O termo da moda agora é economia criativa, ou economia da cultura, porque gestores públicos já sabem que cultura e criatividade movimentam capital – seja ele dinheiro, reputação ou mailing -, e não é pouco.

Você, analista de tendências, já percebeu onde isso vai parar, certo?

Não?

A Lei Rouanet já está sendo discutida. Finalmente, a gestão pública de cultura começa a notar a dependência do mercado do dinheiro público, e começa a incentivá-lo para que o setor, seja ele qual for, ande com as próprias pernas, cada vez menos dependente dessa grana do governo, ou até mesmo da grana dada por empresas privadas, que deveriam estar sendo alocadas em impostos. Em alguns anos, muito provavelmente, as únicas áreas que receberão incentivo MESMO serão as de preservação de acervos, porque a partir de um certo momento esses acervos já passaram por todas as explorações comerciais imagináveis, e sua preservação e manutenção custa caro – e tudo o que tiver um potencial de público pagante vai poder andar sozinho, com as próprias pernas. Esforços consideráveis têm sido feitos no sentido de tornar o setor criativo autossustentável.

Então posso apostar que, dentro de alguns anos, esse modelo baseado em editais vai perder muito a força. Se você sustenta seu esquema com dinheiro de patrocínio, de editais, de dinheiro público, você está com os dias contados – seja porque cada vez menos apoio será dado neste sentido, seja porque quem está no poder pode ser outra pessoa nas próximas eleições – e essa pessoa pode não gostar de você.

Então, FdE, que tal aprender com coletivos que independem de verba pública? Com coletivos de produtores que FAZEM suas artes e VENDEM suas artes a preços de mercado? Que se unem para divulgar as produções uns dos outros, que se complementam?

Fica a dica.

Como eu não dou ponto sem nó…

Esse foi só um primeiro diagnóstico. A consultoria completa sobre como adaptar o modelo de negócios para uma gestão mais autossustentável, eu também faço, mas só sendo remunerada de alguma forma, porque meu tempo também vale um bocado. Pode até ser em troca de serviços, mas normalmente é em dinheiro, porque preciso comprar a coca-cola das crianças.

E aí, vai?

Entre em contato: lia.amancio@gmail.com

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