Boneca


BONECA

1994.
Estava na casa de um amigo (“quase irmão”, jurava de pés juntos) com mais dois amigos. A única mulher no meio daqueles rapazes que, com medo de ferirem sua delicadeza tipicamente feminina e inocência adolescente, se abstinham dos mais grosseiros comentários, mas que ela, com toda a sua sensibilidade pisciana, não só adivinhava o que eles iam dizer como falava também, e em termos assustadores para uma mocinha, e ria alto das besteiras que os machos pensam e de suas preferências sexuais — rapaz, como é que uma loira bunduda e peituda pode ser gostosa se não tem nada na cabeça, não sabe falar de cinema nem de literatura nem de música, hein? Quase inadmissível.
E assim passaram a noite falando besteira, os quatro, vendo flashes de filmes na tevê, até que amanheceu e chegou aquela hora crítica em que tudo se fala — e de tudo se ri.
— Boneca.
Hã?
— Bo-ne-ca. Acho lindo.
— Ra ra ra ra ra!!! Boneca? O que você leu do Nelson Rodrigues ultimamente, hein?
— Ah, qual é o problema? Acho um barato o cara que chama sua garota de boneca. Mas não é “minha boneca”, ou “bonequinha”… legal mesmo é aquela cara de cafajeste, aquele olhar de “vem cá, mulé” e ele puxa e fala “bo… ne… ca…”. Sei lá, sou meio mulher de malandro, e mulher à moda antiga, sabe? Imagina, aquele bigodinho fino, topetão, camisa meio abotoada e falando assim? É o homem da minha vida.
— Vem cá, bo-ne-ca…
— Ah, você não vale, eu acabei de falar. Tem que ser espontâneo.

1998.

Depois de algumas experiências frustradas com o rock, não desistira de vez daquela vida, mas sabe como é, “I hate rock’n’roll and all those people with nothing to show”, como diriam os irmãos Reid. Afinal, ainda era jovem, e o mundo das guitarras e amplificadores valvulados interessava — e como — mas que todos à sua volta estavam passando por uma crise de criatividade, era verdade. Sempre fora musical — coisa de aos oito anos de idade fazer verdadeiras canções pop no tecladinho que havia ganho de presente —, entendia do assunto, inclusive de teoria e harmonia, já que havia dedicado anos de sua vida a corais, mas não dava mais para agüentar as bandas dos próprios amigos, que dirá aquelas que já existem há mais de dez anos e continuam fazendo as mesmas músicas! Pfff.
Então fez-se a luz.
Nossa protagonista havia se encantado com o jazz.
Não aquele jazz pré bossa-nova, mas o jazz pré isso tudo, aquele jazz animado e cheio de swing da New Orleans dos anos 20. Nunca estivera em New Orleans, não havia nascido no começo do século. Mas sabe como é esse tal saudosismo. Ainda mais quando se trata de algo que não se viveu. Você se fixa em tal assunto e pesquisa e persegue e corre atrás.
Esse detalhe será fundamental para a compreensão do resto da história. Imaginem vocês que no contexto de seu atual objeto de interesse, os rapazes chamavam as garotas de “dolls” (para os que não entendem nada de inglês, “bonecas”).
Parecia uma realidade interessante. Pena que não era a sua.
Afinal, onde andava o romantismo cafajeste e malandro hoje? Princesa? Não, não. Gata? Ui. Queria ser chamada de boneca.
Então lembrara-se da confissão que fizera há quatro anos atrás. Levando-se em conta que estava sozinha e sem gostar de ninguém, era mais fácil pensar no que seria o homem ideal. E o homem ideal a chamaria assim, usaria flor na lapela e chapéu de palha.
Bem, acho que esqueceram de avisar nossa amiga de que homem ideal não existe.
Viveria ela frustrada para sempre?
Para sempre triste e sozinha?
Andava cabisbaixa pelas ruas da cidade, shoegazer mesmo, até que se deparou com um par de sapatos bicolores.
Foi levantando o olhar e vendo aquela figura parada em sua frente. Calça de vinco, cinto de couro branco, camisa de botão estampada, com os botões de cima abertos, a correntinha dourada e o peito cabeludo à mostra.
O bigodinho fino em plena harmonia com os traços do rosto, as costeletas e o pente no bolso da camisa… o anel grosso no dedo mindinho da mão direita. Os olhos eram bonitos.
Só os olhos.
E mesmo assim, sendo muito boazinha.
Então aquela visão dantesca olha para ela e diz:
— A boneca pode me informar onde fica o ponto de ônibus?
O desgraçado ainda mascava um palito.
Por um segundo, e não mais do que isso, vários pensamentos tomaram sua mente de assalto.
O primeiro deles foi “puta que pariu, isso não é homem, é um parente sem charme do Chewbacca”. Depois pensou em adjetivos para definir seu susto e em como contaria para as amigas. Enquanto isso, pensava também no possível futuro ao lado de um homem daqueles.
Filhos, sempre os quisera, mas espera aí: muitos filhos, rolinhos e lenço na cabeça, pau de macarrão, mas só mesmo para fazer macarrão, porque a tarefa de bater seria dele. Barrigudo e constantemente bêbado, tal como um Al Bundy sem o glamour da televisão — se é que a televisão tinha algum glamour — e falando português. Mau português. Jogos de futebol aos domingos, bafo de cerveja, crianças de nariz escorrendo, e o maridão falando “Vem cá, boneca”, acompanhado de um tapinha na bunda e uma coçada de saco daquelas demoradas, pra ajeitar o dito cujo na cueca apertada e estampada. Não. Preta. Cueca preta.
Não dava. Não mesmo. Boneca não.
Talvez docinho de coco. Mas “boneca”?
Não. Nem docinho de coco. Era preferível ficar sozinha.